Rabo de Peixe
Quando um imaginário citadino olha de esguelha para Rabo de Peixe só encontra estranheza: na forma de vestir, de falar, de estar na rua, até de olhar. “Estão sempre a dizer que somos pobres, vê alguma pobreza aqui?” A pobreza depende muito das lentes de quem a observa. E, sim, num primeiro encontro, víamos pobreza. Mas haverá melhor antídoto para um olhar contaminado do que a proximidade, o toque, a conversa?
Não foram precisos muitos dias para que crianças ao deus-dará se tornassem miúdos que brincam livres, sem medo de rasgar a roupa, atentos “àquele peixe muito bonito que salta alto lá ao longe”. Para que homens ociosos encostados à parede se passassem a chamar Inácio, António, Leonardo, Aurélio…
Pescadores de cara e mãos vincadas, símbolos do trabalho árduo de quem, dependendo das marés, pode ir para o mar às cinco da manhã e só regressar na madrugada seguinte. Para que mulheres de olhar desconfiado sorrissem enquanto detalhavam o orgulho nas tradições e o porquê de Rabo de Peixe ser “o melhor sítio onde uma pessoa pode viver”.
A repulsa visceral do rótulo de “pobrezinhos” não nega a vida difícil, nem a existência de famílias que precisam de ajuda — vivem numa ilha, há poucas oportunidades de emprego e os salários são baixos. Mas quando a estatística os atira para a cauda do país, quem vive em Rabo de Peixe não gosta. E aponta o dedo a dois alvos: aos políticos do continente que nunca vieram cá ouvi-los mais de cinco minutos e aos jornalistas que os retratam como se fossem “animais selvagens”.
75%
Freguesia com maior abstenção nas legislativas de 2024.
Fonte: Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna
8799
Número de habitantes de Rabo de Peixe, a freguesia mais populosa da Região Autónoma dos Açores.
Fonte: Censos 2021
“Estão sempre a dizer que somos pobres, vê alguma pobreza aqui? Trabalha-se muito, mas a vida está melhor: gosto de ver os pescadores da minha terra bem vestidos, com bons ténis… Para os jovens é tudo mais difícil, os meus filhos só têm uma casa porque lhes dei um terreno. Vivi o 25 de Abril, sei o que é a ditadura e, por isso, voto sempre. Acho que os políticos não são todos iguais, mas não gosto de lá ver sempre as mesmas caras. Devia ser proibido ser-se deputado toda a vida, ser político não é profissão.”
Preferiu o anonimato, 69 anos
25%
Um quarto dos habitantes tem menos de 20 anos, uma população mais jovem do que a média nacional (18%).
Fonte: Censos 2021
“Nunca votei, não gosto. Os políticos mudam, vêm novos e continua tudo igual, não fazem nada. Se chegasse alguma pessoa melhorzinha, que apoiasse os pescadores e os lavradores, eu até pensava em ir votar.”
Inácio, 20 anos, pescador e armador
“Não fui votar, porque acho que não muda nada. PS ou PSD estão há anos no poder e a vida das pessoas não melhora. O RSI é um problema aqui em Rabo de Peixe; acha bem quem não trabalha ter mais regalias do que quem se esforça? Chateia-me ver as pessoas por aí que não fazem nada. Não sou revoltada, mas trabalho para ter o meu.”
Gabi, 40 anos, cabeleireira
44%
A percentagem de habitantes que completaram a escolaridade obrigatória está em linha com a mediana das freguesias nacionais (47%), mas longe da freguesia com maior proporção de residentes com o 12.º ano, as Avenidas Novas, em Lisboa (87%).
Fonte: Censos 2021
“Quando me casei, morei quatro anos com a minha sogra. Depois comprámos a nossa casa, mas o dinheiro não chegava para pagar a renda e tive de ir trabalhar. Ainda me candidatei ao RSI, mas não me deram nada. Tenho o que tenho porque trabalho; estou há 21 anos na salsicharia Carreiro Sousa. Os políticos não fazem nada. Ir votar não me acrescenta nada na vida, por isso não vou.”
Idalta, 47 anos, trabalhadora fabril
8%
Nona freguesia de Portugal com maior percentagem de habitantes a receber o Rendimento Social de Inserção (RSI) — 489 pessoas de um total de 6280 residentes maiores de 18 anos. Monforte da Beira, em Castelo Branco, é a freguesia com a maior proporção de pessoas (20%) beneficiárias de RSI.
Fonte: Censos 2021
“Tenho uma embarcação própria e vou para o mar sozinho. O que um pescador ganha dá para viver à rasca — o peixe é que manda na gente, não é a gente que manda no peixe. Os políticos prometem, mas, depois de eleitos, dizem que não têm dinheiro. Não voto mais naquela gente! Os pobres é que pagam impostos, é o povo quem sustenta o país.”
Pedro, 47 anos, pescador
17%
Quinhentas e cinquenta pessoas trabalham no sector da agricultura e das pescas. Um número seis vezes superior à média nacional.
Fonte: Censos 2021
“Quando não havia mais nada para alimentar os meus oito filhos, aquecia um litro de leite com uma lata de atum. Hoje vive-se muito melhor em Rabo de Peixe. A minha casa foi o Governo que me deu. O presidente da junta incentiva muito ao voto, mas, ultimamente, não tenho ido votar. Aqui, um dos grandes problemas é que os donos dos barcos recebem os subsídios da pesca e não dão nada aos pescadores, que são quem se arrisca no mar.”
Cidália, 67 anos, reformada
“Só votei duas vezes na vida, e sempre para a junta de freguesia. Conheço o presidente desde o tempo em que jogava futebol no Clube Desportivo de Rabo de Peixe, não é má pessoa. Nas outras eleições nunca voto, nem conheço quem são os políticos. Esses placares grandes nas ruas servem para quê? É só para tapar a vista… Perder o meu tempo a ir votar? Eu não! Fica sempre tudo igual. Por exemplo, o ordenado subiu, mas os preços também subiram, com que dinheiro limpo é que ficamos?”
Mauro, 36 anos, empregado de balcão
“Sem menosprezar a importância do assunto, quando temos alunos com problemas de violência doméstica, de consumo de drogas, não estamos preocupados em dizer-lhes que é importante ir votar. Existem aqui famílias problemáticas, como em outras regiões — não é porque a escola está em Rabo de Peixe, mas por ser uma das maiores da região. Como a vila é numerosa, os problemas do dia-a-dia sentem-se de uma forma muito presente. Mas temos muitos médicos a saírem daqui, muitos engenheiros, advogados, muitos professores também. Os alunos da vila servem-se da escola como elevador social.”
Artur, 44 anos, professor