Mourão
Na paisagem que circunda esta vila raiana. No café Retiro Azul que é ponto de encontro nas manhãs de domingo. Entre um prato de favas com chouriço e outro de bochechas de porco preto, no restaurante Chaminé. No átrio da igreja, após a homilia dominical. Em Mourão, todas as conversas desaguam na barragem de Alqueva.
O maior lago artificial da Europa Ocidental, motivo de visita para muitas das pessoas que por aqui passam, foi para os mouranenses o responsável pela declaração de óbito da freguesia: “Desde que está cá o Alqueva, Mourão morreu.”
Culpam o grande lago pela quebra da indústria local, pelo declínio da agricultura tradicional e familiar, e pelo desaparecimento da antiga aldeia da Luz, submersa há 22 anos. Só a praia fluvial, inaugurada em 2017, atenua o desalento pela falta de acesso à água, ante uma barreira artificial que prometia o desenvolvimento económico do território, mas da qual a população diz não poder tirar “nem uma gota de água”.
Quem aqui vive, deixou-se esmagar por uma visão fatalista do futuro. As benesses dadas pela câmara municipal — como as actividades gratuitas nas férias da escola ou o acesso às piscinas municipais por pouco mais de um euro — são insuficientes para trazer alento a uma população anestesiada pela falta de oportunidades. Até as chaminés mouriscas, que singularizam a traça dos telhados e saltam à vista dos que não as olham todos os dias, já só a muito custo são referidas como um motivo de orgulho da região.
Ainda que os fundos europeus sejam responsáveis pela reabilitação de infra-estruturas como o cine-teatro e a biblioteca municipal, a União Europeia é referida, uma e outra vez, como um inimigo público. É que para quem precisa de ganhar a vida, projectos e promessas não chegam.
E num cenário em que os únicos empregadores são os latifundiários locais que “ainda resistem”, a Santa Casa da Misericórdia e o município, é difícil encontrar saídas. O lamento é generalizado: “Vivemos numa terra subsídio-dependente.”
94%
Foi a segunda maior taxa de abstenção do país nas europeias de 2019. Dos 1389 eleitores recenseados, 1299 não votaram.
Fonte: Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna
“Aqui à volta é só água. Desde que construíram a barragem do Alqueva, Mourão morreu; a Portucel fechou, as pessoas emigraram… Voto sempre e nunca votei em branco. Menos nas europeias, com essas não perco o meu tempo.”
José Alberto, 47 anos, pedreiro
“Com o que vemos acontecer — os desvios de dinheiro, a corrupção —, vamos acreditar em quem? Neste momento, não vejo nenhum político capaz. Mas ainda bem que há oposição, não sou a favor de maiorias absolutas.”
Hugo, 33 anos, técnico do Programa Escolhas
96%
É a proporção de água do Sistema Global de Alqueva usados para rega — aumentou 33% face a 2021.
Fonte: Relatório de caracterização dos clientes da EDIA 2022
“A exploração agrícola no concelho não foi contemplada no plano de rega. Só temos acesso à luz, e não à água. Isso tirou-nos capacidade competitiva… Moura vai ter um bloco de rega, Reguengos também… pode ser que Mourão também venha a ter.”
João, presidente da câmara
“Nós não temos projectos agrícolas, temos pesadelos agrícolas. Negar uma coisa destas a uma população que tem falta de água… Tenho 200 hectares de terra que fazem fronteira com o Alqueva e não posso de lá tirar uma gota de água. Tinha mais 200 hectares, mas ficaram submersos com a barragem.”
José, 68 anos, geógrafo
“A única coisa que esta barragem nos trouxe foi a obrigação de mudar uma aldeia inteira de sítio. As memórias de uma vida ficaram submersas. Aqui temos obra feita, mas não há gente. Não tenho nenhum partido político, decido votar em quem acho que é melhor para o país. Os meus pais não querem votar, mas digo-lhes sempre que não podemos exigir mudanças se não votarmos.”
Fábio, 34 anos, bombeiro
“Os programas de apoio chegam aqui, mas não de forma simples. É muita burocracia, é preciso sabermo-nos mexer. Tenho um filho que se dedica à produção de ovelhas, sei bem do que falo. Dão subsídios pela terra, por cada ovelha, por cada sobreiro. Aqui vive-se de subsídios, e não são só as pessoas ciganas. Eu não vivo aqui, só venho de passagem. Sou ideologicamente do PSD, mas sou pessoa para votar num partido de esquerda se for alguém com quem me identifique intelectualmente.”
Natércia, 66 anos, administradora hospitalar reformada
220
Número de pessoas empregadas pelo município de Mourão. Representam um terço dos trabalhadores por conta de outrem no concelho (696).
Fonte: Câmara Municipal de Mourão e Censos 2021
47%
Quase metade dos habitantes tem entre 20 e 60 anos. Destas 722 pessoas, mais de metade tem acima de 40 anos (27%).
Fonte: Censos 2021
Cláudia, 44 anos, arqueóloga
“Sou de Castro Verde, em Beja. Há 15 anos, mudei-me para Mourão para acompanhar a implementação do projecto do Alqueva — todos os projectos agrícolas precisam de acompanhamento arqueológico. Com as contas para pagar, tive de encontrar uma ocupação alternativa. O turismo começou a aumentar, eu via o sobe e desce de pessoas na rua de acesso ao castelo, e pensei que uma loja de artesanato local seria uma boa oportunidade de negócio. Felizmente tem corrido bem, é a única loja de souvenirs em Mourão. Também tenho este café, um espaço da câmara que estava vazio há muitos anos, e a renda não é muito alta.”
7%
A percentagem de mouranenses com formação académica é três vezes inferior à realidade nacional (21%).
Fonte: Censos 2021
José, professor
“O afastamento do associativismo — uma das grandes armas que tínhamos — talvez se deva às dificuldades das famílias. Vive-se mal num concelho que é pouco rico, que perdeu território para a barragem do Alqueva, onde há pouco emprego. Os que tinham mais expectativas de vida abalaram daqui, ficámos mais isolados. São poucos os professores que querem cá ficar, a comunidade escolar é cada vez mais reduzida, só não se nota tanto porque neste momento temos muitos alunos de etnia cigana. Tenho amigos que dizem: Mourão é o desembargo dos coxos. É triste, porque Mourão é uma terra bonita e com muitas potencialidades.”
“A falta de formação e de informação talvez afaste as pessoas da política. Venho de uma família com tradição comunista. Nas autárquicas, voto pela pessoa — quem resolve os nossos problemas são os presidentes da junta e da câmara. Em todas as outras eleições, voto no partido que trago de família… Só não votei PCP quando o Sampaio da Nóvoa foi candidato às presidenciais de 2016.”
Cláudia, 44 anos, arqueóloga
65%
A freguesia de Mourão concentra o maior número de casas vagas no concelho — para venda, arrendamento ou outros motivos. São 154 num universo de 238 alojamentos desocupados no concelho.
Fonte: Censos 2021
“Trabalhei dois anos em Évora, numa fábrica de peças para automóveis. Em Maio de 2020, depois de terem despedido muitas pessoas, regressei para a casa dos meus pais e estive no desemprego até Janeiro de 2022. Actualmente trabalho na Associação ADEREM [Associação de Desenvolvimento de Mourão], e continuo a viver com os meus pais. Com os preços a oscilar, a escassez de emprego, a alimentação e o vestuário mais caros, quem é que quer arriscar-se num empréstimo para comprar casa?”
Hugo, 33 anos, técnico do Programa Escolhas
“Vemo-los na televisão e aquilo que dizem nada tem a ver com aquilo que a gente precisa. O que sabemos é que chega o final do mês e temos de pagar a água, a luz, a renda… Tenho de me governar com 555 euros, e eles têm milhões! Pedi dinheiro ao banco, construí a minha casa, paguei e, como se diz no Alentejo, não devo nada a cabrão nenhum; já eles, não sei se conseguem gerir bem os seus milhões.”
Florêncio, 64 anos, pedreiro e pintor
35%
Nas legislativas de 2024, Mourão registou uma abstenção em linha com o resultado no país (34%). O Chega foi o partido mais votado (32,5%), pouco à frente do Partido Socialista (32,3%).
Fonte: Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna