Bastidores

Miguel Carvalho

Foi a sangrar sonhos e direitos sociais que se abriu a porta à abstenção.

É a escarafunchar ressentimentos e preconceitos que alguns sangram a democracia para seu benefício eleitoral. Eduardo Galeano escreveu sobre essas veias abertas — e outras — nas aspirações dos povos. E é a parafrasear o uruguaio que isto se explica melhor: incapazes de multiplicar os pães, os impérios de ontem e os regimes de hoje reduziram os comensais. Galeano não podia adivinhar, mas a geografia do ressentimento de que os populismos hoje se alimentam estava escrita.

Em Portugal, começou por domesticar-se a Constituição. Apesar do riquíssimo acervo de direitos sociais, “único na Europa”, o texto fundador da democracia foi vítima da “contra-revolução jurídica” que aplainou o regresso da oligarquia económica, escancarou os portões ao neoliberalismo e amansou o carácter “transformador” da lei das leis, conforme explicou a constitucionalista Teresa Violante num estudo recente.

É sabido: o futuro vê-se melhor se olharmos pelo retrovisor.

Mas muitos ficaram a ver passar os comboios. E não é apenas metáfora. Durante décadas, o Estado encerrou e desmantelou, por vezes pela calada da noite, linhas e estações ferroviárias. O incensado “custo/benefício” deslaçou comunidades, abandonou populações, extinguiu empregos, pequenos negócios e, como agora se diz, “descontinuou” serviços.

O cavaquismo (1985-1995) ligou o litoral ao interior pela via rápida do betão, julgando que o investimento ia atrás. As auto-estradas podiam ser a mais bela obra a fundo perdido, mas, pasme-se, tinham dois sentidos. O facto, aparentemente, não ocorreu aos especialistas (hábito praticado com afinco na fusão de freguesias). Ora, o interior, onde o “deserto” avançava, rumou então ao litoral. O litoral, claro, nem se mexeu: ficou no seu sítio, onde ainda hoje se espreme para caber numa vida amarrotada.

Era o “pogresso”, lembram-se? E nunca mais parou.

União das freguesias de Cacém e São Marcos, 2024

Nesse país invisível, nesse mapa do descontentamento ao qual se fecharam as portas uma a uma, e onde, demasiadas vezes, os holofotes só aparecem à cata da excitação da tragédia, reduziram-se serviços de saúde, desagregaram-se instituições, isolaram-se idosos. As distâncias aumentaram, não apenas físicas. Fecham-se escolas, escasseiam empregos, expectativas, transportes. O trabalho precarizou-se . Os velhos vão morrendo. Os jovens encaixotam futuros. Os pobres que se ajeitem, raspadinha que os ajude. O desprestígio da política e a desconfiança em relação às instituições fizeram caminho de mão dada com a desesperança. A erosão da cidadania e outras narrativas digitais do pós-verdade tomaram conta do quotidiano. 

O populismo não ficou a ver.

Desde logo, os municípios dos distritos onde o Chega obteve melhores resultados para eleger 12 deputados nas legislativas de 2022 caracterizam-se por um poder de compra inferior à média nacional (dados da plataforma Eye Data). E embora falte avaliar o impacto eleitoral de amputações sofridas no território (correios, ensino, saúde, agências bancárias etc.), a implantação e subida do partido deve muito à diminuição da lealdade dos eleitores às forças políticas tradicionais, aos altos índices de abstenção e à insuficiência de respostas sérias a temas sensíveis (imigração, corrupção e ordem pública), garantem os autores do capítulo português do livro “Las Nuevas Extremas Derechas en el Mundo” (Tirant Editorial, 2023). À obra, os cientistas políticos Aleksandro Palomo e Jürgen Haberleithner juntam o exemplo dos nacionalistas da AfD (Alternativa para a Alemanha), cuja receita de sucesso foi a mobilização de muitos abstencionistas insatisfeitos com o sistema político. 

Se dispensa calhamaços de quase 600 páginas, é pena.

Mas há outra maneira de perceber o terreno fértil da abstenção e das narrativas racistas e xenófobas que lavram por aí à boleia de descrédito político, do desemprego estrutural, das crises económicas e sanitárias e do desabar dos mundos rural e industrial: é ouvir o taberneiro T.J. Balentine, figura central do filme “The Old Oak”, de Ken Loach. Sim, é sempre mais fácil esmurrar quem está mais abaixo na escala social — ciganos, imigrantes ou refugiados — enquanto os verdadeiros culpados continuam inacessíveis, bem acima da nossa altura, a apreciar o combate pela sobrevivência na arena quotidiana. Haverá forma de opressão mais refinada?

Tic-tac, tic-tac

Sim, a bomba-relógio está aí. E não vem de Marte.

União das freguesias de Cacém e São Marcos, 2024

As direitas radicais ou extremistas nem precisaram de se infiltrar em sectores profissionais decisivos para a contestação “anti-sistema” ou classes sociais mais frágeis. Bastou oferecer-lhes uma narrativa simples, eficaz, viral, da tasca à academia, da esquadra à escola, do hospital ao campo, do bairro social à mansão da aristocracia, falida ou pujante.

O Chega tornou-se o íman do ressabiamento, a casa-abrigo dos excluídos, perseguidos, violentados e frustrados que a democracia deixou pelo caminho, oportunistas ou não. Mas será a base eleitoral da “criatura” um rebanho de “fachos” na narrativa primária das trincheiras políticas? Não será essa, desde logo, a estigmatização indesejável e arriscada que nega à própria democracia a possibilidade de se redimir, redimindo-os?

Na “residência espanhola” da direita radical populista cabem legiões de apaniguados que nunca votaram, antigos filiados no PS, PSD e CDS, ex-militantes e ex-autarcas da CDU e do BE, ou até mesmo dezenas de aderentes com currículo sindical. Ali moram os extremos: milionários interessados em financiar quem melhor serve a casta, mas também resmas de precários para os quais os chumbos nas provas de conhecimentos ou de aptidão cultural dos concursos públicos só têm uma explicação: a que Ventura lhes vende. Essa não é, obviamente, sobre as fragilidades curriculares, de vida ou do país, mas sobre os bodes expiatórios da imigração e do subsídio, as conspirações e esquemas da “podridão” do regime que lhes nega um emprego justo e merecido. 

E a ironia é esta: nos próximos actos eleitorais, o eventual aumento da participação eleitoral pode acabar no colo de uma reforçada direita radical ciberpopulista, que afronta a mediação informativa profissional e reduz o escrutínio jornalístico a terra queimada.

É conhecida a nossa inclinação histórica, enquanto povo, por Messias de aviário e Césares de psiché. Mas, no ano em que se comemora o 25 de Abril, um sebastianismo tiktok espreita no nevoeiro da desinformação, insuflado pelo algoritmo das modas, incertezas, desilusões e raivas acumuladas. Em 2024, a sede de uma espera, agora carregada de desespero e ressentimento, ameaça levar a democracia na torrente. Reset

Mourão, 2024

Arquitectura da informação
Beatriz Walviesse Dias
Diogo Cardoso
Luciana Maruta
Ricardo Venâncio Lopes
Sofia da Palma Rodrigues

Entrevistas e texto
Beatriz Walviesse Dias
Luciana Maruta
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Fotografia e edição de imagem
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Design 
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Selecção e revisão de dados
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Edição de texto
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Revisão do texto 
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Tradução em inglês
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Revisão do texto em inglês
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Desenvolvimento web
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Produção
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Comunicação
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Financiamento
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Apoio
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Quarteira

30 de Abril de 2024

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